A ESCOLA NECESSÁRIA PARA OS TEMPOS MODERNOS
Neidson Rodrigues
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À educação escolar têm sido atribuídas funções complementares na sociedade, que lhe retiram sua essencialidade e a transformam em instrumento de múltiplas funções, impedindo-a de compor sua tarefa central.
A escola se converte em aparelho para resolver a questão da fome, da crise social, do desemprego, da saúde, da segurança... Chega a tal ponto essa definição, que todos aceitam que a criança vai para a escola por causa da merenda. Não que garantir a sobrevivência dos educandos não seja necessário, mas por assumir o secundário – bem entendido, do ponto de vista da educação escolar –, a escola não dá conta de realizar o que é sua tarefa central: alfabetizar, ensinar história, geografia e ciências. Aí, diz-se que ela é incompetente.
O que é essencial como função da educação escolar?
A escola tem por função preparar o indivíduo para o exercício da cidadania moderna, para a modernidade.
Isso significa formar o homem capaz de conviver numa sociedade em que se cruzam interveniências e influências mundiais da cultura, da política, da economia, da ciência e da técnica.
O homem, hoje, não é mais o homem da aldeia: estamos vivendo em uma sociedade em que as relações culturais, políticas, econômicas, científicas e técnicas são universais, rompendo fronteiras dos limites individuais e locais. A nossa escola, portanto, tem de preparar o homem para viver na sociedade atual e não para viver na sociedade do passado, ou muito menos, na do futuro. O que temos diante de nós é o homem presente, a realidade presente, a sociedade presente. Num mundo de funções diferenciadas, a escola é a instituição que deve cumprir este papel, de maneira universal, gratuita e democrática. A família pode realizar este ato educativo? Algumas famílias, sim. De maneira geral e universal, não. Temos de garantir, então, que a escola o faça – e a escola estará, ou não, preparada para fazê-lo.
A escola, por si, não forma o cidadão; a escola o prepara, o instrumentaliza, dá condições para que ele possa se formar e se construir. E, por isso, temos de afirmar o que constitui o cerne da atividade educativa, garantia para a construção da escola necessária hoje.
1. CONSIDERAÇÃOES PRELIMINARES
Em primeiro lugar, temos de ter clareza de que a escola é uma instituição social e, como tal, está inserida na história. Ela é uma instituição que sofre influências e que influencia aquilo que acontece ao seu redor. Em outras palavras: a escola está inserida numa certa realidade da qual sofre e exerce influência. Ela não é apenas o local onde se reproduzem os interesses, os valores, a cultura, a ideologia. Também pode influenciar a ideologia, os valores, a ciência, a política e a cultura na sociedade em que está inserida.
A escola não é uma instituição neutra frente à realidade social. Temos de compreender a realidade onde ela se situa para podermos clarear o grau de interferência e a possibilidade de agir também sobre essa realidade.
E que realidade é essa? É a que resulta da totalidade dos atos, das ações, dos valores, dos princípios em que a escola está colocada e da realidade histórica que interfere na realidade educacional.
Não se pode simplesmente considerar que, por estarmos inseridos numa sociedade capitalista – onde há um setor dominante da economia que organiza a estrutura de dominação no universo da ciência, da técnica, da cultura, da ideologia –, a escola, como instituição social inserida nessa realidade, executa apenas a função de reproduzir os interesses desses setores dominantes.
Por mais que tente reproduzir apenas interesses dos donos do capital – que organizam o Estado e a sociedade –, ela também perpassa os outros setores da sociedade, já que cumpre sua função de ensinar, do socializar a cultura e de instrumentalizar os educandos para compreenderem essa realidade.
Isto é um processo contraditório que se passa dentro da escola. Ela é influenciada e influencia a realidade social. Sofre as influências da concepção de cultura, de homem e de cidadania presentes na sociedade. Ela não se encontra de forma neutra frente às interferências, nem há como imaginar que se poderia ser construída isolada delas.
A escola sofre e padece as interferências e influências do poder político do Estado. Não há como julgar os poderes constituídos de uma escola, isolada dos interesses e das influências do poder político do Estado. Quaisquer que sejam os níveis das organizações do poder político de uma sociedade e do modo como este poder político organiza o Estado, a atividade normal da escola vai sofrer interferências e influências desse poder.
A escola sofre as interferências e influências do conhecimento científico e do desenvolvimento da tecnologia. Isto é óbvio. A escola lida com o universo da cultura. Ela prepara e forma os indivíduos para o acesso ao conhecimento e para o domínio dos princípios do desenvolvimento científico e de sua aplicação prática, através da tecnologia.
Isso se expressa na estrutura global da escola, no seu livro didático, no currículo que ela trabalha e no modo como o sistema educacional se organiza.
Frente a essa realidade com a qual a escola se defronta, pode-se assumir pelo menos três posições bastante evidentes, que caracterizam o modo de ser, organizar-se e praticar a educação.
1. Uma escola pode se instituir de forma retrógrada. E quando será retrógada? Ao imaginar que a sua forma de atuação deve ser sempre a de recuperação do tempo perdido. Há educadores que vivem à cata e à busca do tempo perdido. “Ah! No meu tempo! Ah! No tempo do meu pai, da minha mãe!” Isto é, a escola será retrógrada quando imaginar que é possível realizar uma educação escolar, nos dias de hoje, da forma como ela existia há cinqüenta, sessenta ou cem anos atrás. Ela estará à busca de um passado que na realidade não existe.
2. Uma escola pode se instituir de forma reacionária quando ela, compreendendo ou não a realidade dos processos de mudança na sociedade e o embate contraditório das forças existentes, se apresenta como local de resistência à transformação e à mudança. Isto é, quando a escola tenta se instaurar num determinado momento e encará-lo como eterno, como se as forças que existem na sociedade não fossem forças que a estão transformando. Ela se caracteriza também como reacionária quando opta por dirigir privilegiadamente as atenções e as ações educativas aos grupos dominantes da sociedade. Assim, tende a se tornar uma escola reacionária, porque não respeita os interesses, os valores, as carências, as necessidades, os processos de mudança que ocorrem no tecido social a partir das outras forças que agem no âmbito da sociedade.
3. Uma escola pode assumir uma concepção mais progressista. Essa escola assume a sua época e suas contradições e se organiza considerando as relações de forças existentes na sua época. É, assim, instrumento de ação das diversas vontades que circulam na sociedade e impulsiona os processos de mudança daí decorrentes.
A decisão, para ser retrógrada, reacionária ou progressista, é de natureza política. Portanto, depende da vontade individual, coletiva ou do próprio poder político.
A partir dessa decisão é que se pode pensar, então, em toda a organização e funcionamento da escola que se deseja construir.
Devemos, por isso, pensar na forma de reorganização da nossa escola, no modo de trabalho e na totalidade das ações educativas necessárias para podermos impulsionar o processo de construção de uma escola que promova uma educação necessária.
É nesse sentido que se pode perguntar como deve ser o perfil dessa escola necessária para atender à realidade atual.
2. CARACTERÍSTICAS DA ESCOLA NECESSÁRIA
Há algumas características que julgo fundamentais para construir a escola hoje.
Em primeiro lugar, eu diria que a escola necessária é uma escola democrática e que prepara os indivíduos para a democracia.
Ter uma escola democrática significa desenvolver uma educação escolar que compreenda as diversas interferências e interesses que perpassam a sociedade e que organiza o ensino de forma a levar o educando a compreendê-los e a compreender o papel de cada um, individualmente, e o de cada grupo organizado, para poder interferir nas ações dessa sociedade.
Uma escola democrática é aquela que compreende e permite o conflito, e que é capaz de administrá-lo. Nesse sentido, não se desenvolve nela atos que abafam ou eliminam as diferenças existentes.
A escola democrática é, pois, aquela que permite a manifestação das várias contradições que perpassam a escola e que, na sua forma de organização, permite o aprendizado a respeito da natureza dos conflitos e das contradições existentes na sociedade hoje.
Deve ser uma escola onde os professores trabalham de maneira organizada, em que as concepções opostas ou divergentes podem se manifestar; onde os alunos, os pais e a comunidade podem ter a capacidade ou a possibilidade de apresentarem suas alternativas, críticas, observações e sugestões.
Essa escola deve se organizar de forma a poder superar os conflitos, tendendo a não estabelecer uma posição entre chefia e liderança. A chefia pode ser instituída por um ato burocrático ou por um poder acima dela. A liderança só ocorre por manifestação dos liderados.
Lembrem que, numa organização autoritária, é normal o conflito entre chefia e liderança. E que, freqüentemente, o conflito é administrado por um ato burocrático ou legalista da chefia. Para acabar com o conflito, a chefia os aciona, apossando-se do poder de executar a sua ordem. Em nível de escola, são exemplos os atos administrativos que resultam na expulsão de alunos, demissão de professores, proibição da presença de pais em reuniões e assim por diante. Em nível de liderança, a decisão democrática é aquela capaz de analisar a totalidade das alternativas que produzam consenso. Portanto, o convencimento através da mudança de opinião e da mudança de posição. Por isso, uma escola democrática é aquela onde necessariamente deve haver reuniões, debates, discussões e trabalho em conjunto.
É impossível construir uma sociedade democrática nos moldes de uma escola autoritária e, por isso, será impossível a uma escola autoritária ensinar os homens a viverem e conviverem num processo democrático.
Os instrumentos institucionais, como o colegiado, a ação colegiada, reuniões e assembléias, são instrumentos normais numa escola democrática.
Uma segunda características de uma escola necessária para os tempos modernos é que a escola é uma instituição de cultura que deve socializar o saber, a ciência, a técnica e as artes produzidas socialmente, para que todos possam ter acesso a esses bens culturais.
Não são todos na sociedade que produzem a ciência, a técnica e a cultura de maneira igualitária. Mas qualquer produção nesse sentido resulta de um trabalho coletivo da sociedade. Não há cientista que se isole da sociedade para produzir o conhecimento científico. Não há desenvolvimento cultural, seja no campo da literatura, das artes, das letras, da pintura ou da arquitetura, que seja constituído isoladamente da evolução e do desenvolvimento social. Portanto, um grande cientista, uma obra de arte, uma obra literária ou uma obra técnica são frutos do desenvolvimento da civilização.
Como conseqüência, todos nós, de uma ou de outra forma, participamos desse processo, porque é o processo histórico. Assim, todos temos o direito de ter acesso ao conhecimento daquilo que é socialmente produzido.
A instituição escolar tem, portanto, por função repassar, organizar o saber e viabilizar a todos os membros de uma sociedade o acesso aos instrumentos de produção cultural, científica, técnica e política da sociedade em que esses indivíduos vivem.
Uma terceira característica que se deve ressaltar é a exigência de contemporaneidade histórica da escola. Quando aberta à realidade social de um determinado momento, ela capacita aos seus educandos o desenvolvimento de sua compreensão e entendimento da realidade vivida. A escola necessária deve permitir que o educando seja capaz de entrar no mundo dessa realidade para entendê-lo.
Os educandos precisam compreender o que é uma sociedade capitalista, como ela se organiza e como se organizam as classes e os grupos sociais nessa sociedade. Precisam entender, ainda, como a cidade se desenvolvem as relações entre a cidade e o campo, e as relações fundamentais do mundo da produção; como a cultura se diversifica; qual o papel dos agentes culturais; como a ciência é produzida; qual o papel da ciência e da técnica no mundo moderno; como se organiza a vida política no município e no país; como ocorrem as relações internacionais; como as pessoas são manipuladas e como participam da construção e da reconstrução desse processo; por que existe a favela; por que uns ganham mais e outros menos; por que os salários não são estabelecidos em função da importância social da produção.
Enfim, o educando precisa compreender essa realidade, para que possa escolher a forma de atuar na sociedade, dentro dos limites das suas possibilidades.
A escola não pode concorrer para mascarar ou criar tampões nos olhos dos educandos. Não pode fazer o jogo de esconder a realidade porque ela não é arma para produzir felicidades ou infelicidades, mas mediação entre a realidade empírica e o seu conhecimento. A escola pode ser o bisturi que abre os olhos para a compreensão do mundo.
É isto que faz com que a escola de hoje tenha uma quarta característica: que esteja comprometida politicamente e prepare o educando para o exercício da cidadania.
O exercício da cidadania compreende a totalidade dos direitos que o indivíduo tem de desempenhar nas mais diversas funções no tecido social, do ponto de vista individual e social.
No cotidiano de cada um, seja criança ou adulto, o conhecimento dos direitos, o reconhecimento dos deveres, a adesão legítima às riquezas das necessidades (mesmo as sociais, culturais e políticas) garantem o princípio de liberdade de cidadania. Isso confere ao cidadão o direito de escolher seus amigos, brinquedos, diversão, o seu emprego, a mulher com quem vai se casar, o partido político ao qual vai aderir, as concepções de Estado e sociedade para as quais vai destinar seu voto, o lugar que ele vai ocupar na sociedade,
Isso tudo compõe a totalidade dos direitos no exercício da cidadania e, para que ele seja capaz de realizar essa opção e inserir nela sua vontade, disponibilidade e competência para exercer ou para atingir aquilo que deseja, tem necessidade de estar preparado para o exercício dessa função de cidadania.
De forma alguma lhe pode ser vedada a condição desse exercício de cidadania. Portanto, a escola necessária é aquela comprometida politicamente com esse processo, capaz de preparar o educando para esse conhecimento e para a ação de cidadania numa sociedade moderna, através de suas ações educativas e da totalidade de suas ações pedagógicas.
Essas são algumas características fundamentais para pensarmos na escola necessária que estamos querendo construir.
3. O EDUCADOR NECESSÁRIO
Essa escola necessária exige um educador necessário para cumprir suas tarefas. Esse educador necessário deve ter algumas características fundamentais.
Em primeiro lugar, ele deve estar comprometido politicamente com a sua tarefa de educador. Esse comprometimento exige que as pessoas tenham consciência da responsabilidade que lhes foi confiada. Não se é educador como se é operário de uma fábrica de automóveis.
O educador não pode julgar que a atividade da educação funciona do mesmo modo que a de um trabalhador de fábrica. Não há como o educador começar a ser educador na hora em que bate o ponto e deixar de sê-lo na hora em que o relógio indica o fim do expediente.
Do educador se exige uma constante ocupação com o ato educativo. Ele tem de ser. É uma questão de ser e não uma questão de situação. Exige-se, portanto, um crescimento dessa consciência política, que se obtém no próprio processo político do trabalho. Essa consciência política não se obtém através de uma verificação da tendência psicológica de alguém ou de um teste psicológico para avalaiar a vocação. Mesmo porque as vocações também são históricas e se dão na história.
À medida que o educador, enquanto educador, compreende a importância social do seu trabalho, a dimensão transformadora da sua ação, a importância social, cultural, coletiva e política da sua tarefa, o seu compromisso cresce.
Ninguém é comprometido, politicamente, de uma vez por todas. O compromisso é como um ato de amor, que tem de se renovar diariamente. Na realidade, o ato de educação exige necessariamente uma espécie de renovação diária do compromisso com o ato educativo.
Em segundo lugar, o professor comprometido politicamente tem de ser tecnicamente competente. A competência técnica se renova da mesma forma que o compromisso político. Nenhum professor está, em algum momento, adequadamente preparado.
Há de se lembrar que a preparação técnica, a ampliação do conhecimento e a atualização exigem um exercício freqüente e diário por parte do educador e do sistema no qual ele está inserido. Mas, necessariamente, exigem vontade, desejo, carência do profissional professor.
Aquele educador que se sente comprometido politicamente já está com a vontade direcionada para a sua preparação técnica. Não há como preparar alguém para o exercício da função educativa se ele não se encontra, interiormente, comprometido com essa função.
É por isso que a questão do compromisso político é fundamental até para que se possa desenvolver a competência técnica.
Não podemos ter a ilusão de que os professores a partir de um determinado momento estão preparados. Nenhum professor está preparado porque cursou a faculdade ou a universidade, ou porque leu cinco, dez, cinqüenta ou duzentos livros, ouviu um determinado número de conferências, participou de uma determinada quantidade de cursos. Estes são instrumentos que podem auxiliar o processo de sua elevação técnica. Em cada momento, temos educadores em níveis diferenciados de preparação. O processo de preparação dos professores, tecnicamente, tem de considerar o ponto de partida em que se encontra esse professor para que se possa elevar sua competência técnica.
Em terceiro lugar, se a escola se pretende democrática, o educador necessário para ela deve assumir, democraticamente, a sua tarefa educativa. Como conseqüência, ele deve compreender a importância coletiva do seu trabalho. Se não compreende, ou é incapaz de compreender, que sua tarefa educativa não se encerra no âmbito de sua disciplina, no período de sua aula e na sua forma de avaliação, ele não vai concorrer para o exercício e para a formação de uma escola e de uma educação democráticas.
Há de se advertir aos educandos para compreenderem a importância do trabalho democrático e, portanto, solidário e cooperativo no interior da escola e levá-los a se despirem do individualismo e do egoísmo.
A atividade pedagógica não é solitária: ela é uma atividade solidária. É a totalidade dos atos pedagógicos no interior da escola que concorre para o seu crescimento e a formação do educador e não a totalidade dos atos de qualquer professor, individualmente considerado.
Por último, a escola necessária exige, além de um educador com perfil diferente para o trabalho escolar, também um currículo e uma organização administrativa necessários.
4. O CURRÌCULO NECESSÁRIO
O que a escola faz, de maneira essencial e fundamental, é aquilo que circula no seu interior, como sua atividade principal, como sua matéria-prima fundamental: o “currículo”. O currículo é o instrumento através do qual a escola vai preparar o indivíduo para o exercício da cidadania. Aqui, também, com respeito ao currículo, temos de pensar no que é permanente e no que é principal e no que secundário, no que é secundário, no que é central e no que é periférico. Dentro dele há uma essencialidade que, se não for cumprida, descaracteriza a escola, comprometendo a função de preparação para a cidadania.
Lembremos que a escola prepara para a cidadania através da prática – porque não se ensina alguém somente através de discursos. Ensina-se através do discurso e da prática. Pode-se fazer um discurso democrático na escola: se a prática da escola é autoritária, se ensinará muito mais o comportamento autoritário do que a prática democrática. A escola, para ensinar, precisa fazer o discurso da democracia e executá-la; tem, inclusive, de demonstrar as dificuldades de se praticá-la, pois faz parte do discurso da democracia dizer que praticá-la é difícil, para que não se pense que praticar a democracia é a coisa mais fácil do mundo. Faz parte do discurso da democracia demonstrar como, na prática, é difícil praticá-la e mesmo entendê-la. Mesmo porque não temos nenhum exemplo histórico no mundo ou na história da civilização do que constitui a sociedade democrática. Temos instituições, homens, ações permeadas do espírito democrático – mas a democracia, em seu estado puro, não existe. Então, a escola ensina através da atividade curricular e através de sua prática.
Dissemos que é fundamental saber qual é a essencialidade do currículo. Na preparação para a cidadania, há duas questões que se colocam essenciais. Primeiro, compreender o que se passa no mundo onde estamos vivendo. Segundo, compreender as formas de agir e atuar neste mundo.
É discurso bastante universal dizer que a escola precisa preparar o cidadão crítico. O cidadão crítico não é apenas aquele que é capaz de fazer a crítica da consciência. Ele tem que dominar, necessariamente, o conhecimento daquilo que vai criticar. O cidadão é alguém capaz de distinguir as coisas na sociedade – o verbo grego kritein, de onde vem a palavra CRÍTICA, significa julgar, distinguir, analisar, separar. Ao fazer a crítica, tenho de ser capaz de fazer distinção, julgamento, separação das coisas. Só posso fazer isso se dominar o conhecimento sobre as coisas, sobre a realidade da qual vou fazer a crítica.
Formar uma consciência crítica significa preparar o indivíduo para – de posse do conhecimento da sociedade em si e do conhecimento sobre as condições de suas próprias funções – distinguir o que os outros estão fazendo e o que ele deve fazer.
O que é fundamental na educação escolar é que ela seja capaz de incorporar, em seu processo pedagógico, o desenvolvimento de ações de conhecimento que leve o indivíduo a, primeiro, conhecer o mundo; segundo, conhecer-se como sujeito capaz de agir neste mundo e transformá-lo.
Como levar os indivíduos a conhecer o mundo? Se estamos querendo levar as pessoas, através do ensino e da educação escolar, a serem capazes de ver o mundo, devemos levá-las a procurar a realidade – em grego, existe a expressão Aletheia, que significa “tirar o véu que encobre alguma coisa”. Encontramos a verdade quando tiramos o véu, quando afastamos tudo que encobre a essência das coisas. Quando retiramos aquilo que nos impede de ver o real, chegamos a verdade – e este é o papel do conhecimento: buscar a verdade das coisas, retirar o véu das aparências, atingir a essencialidade, ultrapassar as aparências. Algumas pessos me têm atribuído uma postura essencialista e idealista com relação a essa afirmação da busca da verdade. Gostaria de advertir: não estou dizendo que tal verdade seja alcançável porque ela existe logo ali detrás das aparências, ou mais além no “mundo das idéias”, ou no interior, como algo que emerge do espírito ou do “reino dos céus”. Ao apontar para essa busca da “verdade”, estou mais próximo da posição de quem assume que a verdade é busca e fuga. Concordo com Nietzsche quando ele diz: “não nos deixemos extraviar: os grandes espíritos são céticos”.
Ora, a atividade educativa serve para ajudar a melhor enxergar o mundo, a retirar o que encobre a nossa faculdade de ver a realidade. Através da atividade escolar estamos como que retirando as crianças de uma sala fechada e abrindo janelas para o mundo. O currículo são as janelas que estaremos abrindo para que a criança veja, não a janela, mas o mundo. Num primeiro momento, ela verá a janela, mas não é a janela o objeto de minha visão e, sim, o mundo.
Através do currículo, do ensino, estaremos abrindo janelas para que as crianças vejam o mundo melhor, se vejam nele, compreendam-no melhor, porque elas só irão compreender melhor se conhecerem melhor o mundo. Depois que abrimos as janelas principais, poderão ser solicitados alguns outros instrumentos acessórios para ver ou aproximar melhor as coisas – podemos usar um binóculo para enxergar mais de perto, pode-se aumentar a iluminação; mas, antes de tudo, há de se abrir as janelas, esse é o ponto de partida.
Então, quais são essas janelas essenciais com as quais temos de trabalhar na escola para que as crianças – todas, de maneira universal, sem distinção – possam, pelo menos, tem uma primeira visão do mundo? São as disciplinas fundamentais: língua portuguesa, as ciências, a matemática, a história, a geografia. O pressuposto para todo esse trabalho escolar é a alfabetização. A alfabetização não é, assim, um conteúdo, ela é a condição primeira para o desenvolvimento de trabalho pedagógico, é o suporte em que lê se assenta. Logo, também não é uma atividade que se esgote num período de tempo. Podemos dizer que a alfabetização é o próprio processo educativo de escola básica. Eu alfabetizo quando ensino português, ciências, matemática, relações sociais, quando amplio a compreensão do mundo etc.
O cidadão despojado do domínio da língua pátria e da escrita encontra-se extremamente limitado, não para entender oi discurso do presidente na televisão, mas para transitar no seu mundo – para consultar a lista telefônica, para comprar uma passagem na rodoviária, para procurar um médico, para consultar a lista da Sunab ... é o seu cotidiano que está aí implicado. Se ele souber a língua inglesa, ótimo: estará ampliando seu ângulo de visão para o conhecimento do mundo. A língua inglesa, no entanto, vai funcionar como binóculo sobre os olhos de alguém que já está vendo – portanto é um acréscimo. No que este acréscimo não seja importante, mas, muito mais importante é a abertura da janela.
A janela representada pela língua portuguesa é, pois, fundamental, não podemos ignorá-la. Temos de pensar, a seguir na progressão, no roteiro de trabalho para ensinar a língua, do 1o. ano escolar até o 2o. Grau, de forma que essa janela se amplie, para que se possa garantir às crianças um domínio da língua capaz de eliminar essa vergonha nacional que é a exigência, no vestibular, de fazer um exame superficial de língua portuguesa para quem passou onze anos na escola fundamental.
Uma outra janela importante – a das ciências. A sociedade moderna é uma sociedade construída e se organiza sob os determinantes do conhecimento científico. É necessário, pois, iniciarmos as crianças nessa forma de produzir o mundo. Não se deve crer que se formarão pequenos cientistas, pequenos químicos, pequenos “Isaacs Newtons”. Mesmo que a escola não disponha de um laboratório bem montado – muitas vezes a manipulação instrumental concorre para mascarar o ensino de ciências –, as operações científicas e o controle da razão no confronto com os fatos do mundo podem ser executados.
O conteúdo do ensino das ciências não pode ser reduzido à memorização de fórmulas, mas é importante saber como essas fórmulas são produzidas pela observação, pela investigação, pelo exercício metódico do pensamento. É importante mostrar até mesmo que, em nome da ciência e do desenvolvimento científico, muitas vezes são cometidos verdadeiros crimes contra a natureza e contra a humanidade, quando a ciência e a técnica são apossadas por grupos que as usam apenas para seus interesses particulares.
É importante mostrar como as técnicas científicas podem liberar o homem do trabalho penoso, possibilitando o alargamento de seu capacidade produtiva, de seu tempo de lazer e de utilização de recursos da natureza que são incorporados na vida individual e social, e que, se isso não ocorre, as causas se encontram nos modos de organização e de dominação social que a ordem política subscreve.
O conhecimento científico contribui para o desenvolvimento de novas formas de vida e para a superação das limitações da natureza. São múltiplos os exemplos que podem ser demonstrados, tais como: no campo da alimentação, do vestuário, transportes, habitação, lazer. Podemos mostrar aos educandos a relação do conhecimento científico com o desenvolvimento da técnica e sua articulação na nossa vida cotidiana, como, por exemplo, os edifícios modernos, os aparelhos de som, de videocassete, o fogão a gás, a eletricidade, o computador, o telefone, o papel e a caneta, a matéria plástica, o cimento armado, o congelamento de alimentos. Da mesma forma, podemos mostrar o conhecimento da matemática, química, física, biologia e sociologia e suas aplicações e implicações na política e na organização social.
Desse modo, os educandos podem conhecer a ciência pelas suas conseqüências e implicações na organização e reorganização da vida. Podemos mostrar, também, que a ciência é fruto do trabalho organizado, coletivo (não há progresso científico que resulte de trabalhos ou pesquisas isoladas), de modo que o educando vá adquirindo conhecimento da importância, amplitude e papel da ciência no mundo moderno, bem como dos princípios que fundamental e orientam a investigação científica. Para aprender, assim, a desmistificar o saber científico, a amar a ciência e a se dedicar, com prazer, à tarefa do saber, abrindo, dessa forma, a sua visão para o conhecimento de uma parcela do mundo com o qual convive e no qual vai atuar como cidadão. E compreenda, enfim, os caminhos da história do homem. Vamos a uma outra janela para a compreensão do mundo: a história.
O ensino da história não pode se reduzir à memorização dos fatos, à informação detalhada dos eventos, ao acúmulo de informações sobre as circunstâncias sob os quais ocorreram. A história não é, simplesmente, um relato de fatos pretéritos, não é o elogio de figuras ilustres. No ensino da história, a função da mente é compreender o acontecido, não apenas memorizá-lo. Sem que se nomeie, preserve, compreenda, sem que se indique onde se encontram as coisas e qual o seu valor, não se pode haver continuidade consciente no tempo, mas somente a eterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem. O conhecimento da história da civilização é importante porque nos fornece as bases para o conhecimento de como aqueles que viveram antes de nós equacionaram as grandes questões humanas.
A geografia é uma outra janela importante que nos permite conhecer o modo como o homem se organiza no espaço e o produz e o incorpora na sua vida, no seu cotidiano e na sociedade.
Um acidente geográfico, um rio, por exemplo, é importante, não porque seja grande ou pequeno e, sim, por causa de sua função social. Um rio é importante, ou porque é um instrumento de comunicação numa sociedade, ou porque ele permite ser incorporado pela produção de energia elétrica, ou porque é importante em um esquema de irrigação, ou porque é fundamental para o equilíbrio ecológico. Ele não é importante porque tem tantos e quais afluentes ... a sua importância é proporcional à sua capacidade de incorporação social; o rio não é, simplesmente, um objeto físico a ser descrito pela geografia – o rio é uma realidade social e política. Do mesmo modo, o clima é importante, não porque é mais frio ou mais quente, mais ou menos úmido, e sim porque condiciona determinados tipos de comportamentos, desde a produção agrícola até o modo de construir casas, de produzir roupas para serem vendidas ou compradas no mercado – o clima tem implicações imediatas para a vida social e política das pessoas e do país. Temos, portanto, de reverter o ensino de geografia para essa tendência para que a questão física e do espaço, que está focalizando, sejam compreendidas numa dimensão social – só assim seremos capazes de abrir janelas para que a criança veja a realidade e para que compreenda por que se constroem estradas aqui e ali, por que determinadas cidades podem crescer mais do que as outras, por que uma região se desenvolve mais do que outra ...
O que temos de fazer, nesse momento, o que se nos apresenta como desafio, é que através do nosso currículo, a escola possa refletir esse momento histórico que estamos vivendo e este papel que lhe é atribuído.
Não é de pequena importância igualmente lembrar que, ao lado de um educador e de um currículo necessário, temos de desenvolver uma metodologia necessária à essa nova escola. Vejamos alguns desses aspectos. A metodologia necessária.
Se julgarmos que a função da escola seja a de apenas repassar o conhecimento para outras cabeças, agiremos num sentido; por outro lado, se julgarmos que a função da escola é, ao repassar conhecimento, também produzir uma transformação no indivíduo, de modo a permitir que ele compreenda melhor o mundo, nossa ação será diferente. Importante não é só o acervo de conhecimentos que se deve selecionar para instruir o ensino – igualmente importante é a maneira como se vai realizar este ensino, o modo como o ensino é trabalhado. E quando falamos do modo estamos nos referindo à metodologia de trabalho da escola. Só que, ao falarmos deste modo, não estamos falando de recursos técnicos para transmitir um conhecimento catalogado: estamos fazendo referência a uma política – alfabetizar, por exemplo, pode ser feito por qualquer método; alfabetizar a partir da vivência, da realidade dos alfabetizandos, fazendo com que eles ampliem o conhecimento de sua realidade e incorporem outros conhecimentos, exige determinado método, não qualquer método.
Se se vai ensinar história do Brasil, sob qualquer método, se estudará o descobrimento, as capitanias hereditárias, a colonização, a República ... – o modo como vamos tratar essas questões é que pode alterar, de maneira substantiva, o significado de cada conteúdo. Podemos estar ensinando para que a criança saiba responder a uma série de perguntas em um programa de televisão, mas podemos também ensiná-la a compreender a história do país e a importância das relações históricas do país. Ao ensianr a Inconfidência Mineira, se nós focalizarmos, simplesmente, como produto de ação de grandes homens, estaremos lhe dando um sentido. Colocando na ação dos grandes homens a significação histórica, passamos para a criança a noção de que ele precisa esperar, sempre, o grande homem que salvará o país, e nunca que as mudanças ocorrem pela vontade e determinação dos homens comuns. Se compreendêssemos que a Inconfidência Mineira é resultado de setenta anos de lutas, durante os quais formou-se a consciência nacional, retiramos, do ensino, a característica de exaltação dos grandes homens, das grandes personalidades, e fazemos com que as crianças compreendam que não são os “grandes homens” que produzem a história e, sim, é esta que produz os grandes homens, é o ato histórico que produz as pessoas necessárias para conduzir o destino do país. Não foi um líder isolado que produziu lideranças novas, foi a luta contra o militarismo que produziu importantes lideranças políticas. Tanto que essas grandes lideranças, naquele momento, desapareceram ao desaparecer a circunstâncias que lhes permitiu a emergência.
Ao levar a criança a compreender deste modo, estaremos mudando a sua compreensão de si mesma e a sua relação com o mundo...
São essas as questões fundamentais com as quais a escola e os educndos devem se ocupar: que concepção de homem, de sociedade e de mundo preside o proceso pedagógico, pois, sob tais concepções, há de se levar o educando a um tipo de visão de mundo e de homem.
Em último lugar, essa escola necessária deve viver de forma radical os seus processos e formas de avaliar.
5. A AVALIAÇÃO NECESSÁRIA
Se alguém considera que avaliar significa verificar o quanto de informação o educando deteve a partir de um determinado trabalho, então avaliar significa medir, pesar na balança.
Foram repassados um quilo de informações de matemática. Quantas gramas o aluno reteve? Até quinhentas gramas, está bem; mais do que isso, melhorou; abaixo disso, está reprovado.
É fundamental entender que esse tipo de concepção de educação estabelece um método de ensino, exige uma determinada aparelhagem e estabelece uma forma de avaliação que vai dizer quem sabem e quem não sabe.
Muito diferente é a concepção do processo educativo como processo de crescimento da visão de mundo, da compreensão da realidade, de abertura intelectual, de desenvolvimento da capacidade de interpretação e de produção do novo, de avaliação das condições de ua determinada realidade. Por aqui começamos a entender o processo educativo como abertura de janelas ao educando para ver o mundo.
Este processo já não pode mais ser medido simplesmente numa balança e nem com fita métrica. Avaliar agora é verificar como o conhecimento está se incorporando no educando, e como modifica a sua compreensão de mundo e eleva a sua capacidade de participar da realidade onde está vivendo.
Este conhecimento incorporado será capaz de ajudá-lo, não apenas a acumular informações, mas a compreender a sua realidade, a entender e participar na mudança social. A posse dessa compreensão levará o educando a organizar o conhecimento dessa realidade, enfim, a organizar a própria realidade. Por isso, ela ativa a transformação individual e social do mundo, da política, da cultura, da ciência, da técnica, da religião, da moral, da estética.
O destinatário da ação educativa, desta forma, é o educando e, portanto, ao avaliar o resultado do trabalho pedagógico, fica evidente que é muito mais desajuste examinar as marcas que ficaram registradas no educando do que a quantidade de informações que o educando é capaz de devolver.
Devemos notar que o objetivo do ensino não é o conteúdo de ensino. Não é o fato histórico, a proposição matemática ou a lei da física que constitui o objetivo do ato educativo. Eles são os mediadores do conhecimento e da competência do educando para compreender o mundo. Mais importante do que o educando saber responder a tantas questões de história e demonstrar o domínio das regras gramaticais da língua portuguesa é ele ser capaz de, através do aprendizado da história, entender o processo de construção social humano e, através do aprendizado da língua, desenvolver sua competência lingüística. Acrescente-se a isso o que podem as ciências, a matemática, a geografia, a educação artística e outros conteúdos abrir a visão de mundo dos educando e teremos como resultado o crescimento intelectual, moral, físico, crítico, político e profissional do educando que está em jogo de modo global no processo educativo. Logo, é isso que deve ser avaliado.
Tal avaliação não pode acontecer de maneira individualizada, segmentada e isolada. Não é importante saber o que ele aprendeu de matemática, mas como o que ele aprendeu produziu nele mais competência para se inserir e insurgir na realidade vivida. A avaliação deve ser considerada pelos educadores, pois, como uma tarefa coletiva, de todos, e não uma obrigação formal, burocrática e isolada no processo pedagógico.
6. CONCLUSÃO
Em último lugar, temos de lembrar que a escola necessária detém a unidade do processo educativo. A escola é única do primeiro ano até a universidade.
O que temos são níveis diferenciados de aproximação e de ampliação do conhecimento, mas este tem uma unidade, das suas formas mais simples às mais complexas; das mais elementares às mais universais; das mais desorganizadas e superficiais às mais profundas.
À medida que avança, permite que se aprofunde na análise da realidade. O processo conduz o educando ao entendimento mais ampliado, à participação mais efetiva, a uma visão de realidade mais ampla e a uma visão de si e da história de maneira mais organizada, a uma atuação mais efetiva no processo de mudança e de transformação da sociedade onde vive.
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